domingo, 11 de maio de 2014

O ponto de vista - Revista Espírita

O ponto de vista

Revista Espírita, julho de 1862

Não há ninguém que não tenha notado o quanto as coisas mudam de aspecto, segundo o ponto de vista sob o qual são consideradas; não é somente o aspecto que se modifica, mas ainda a própria importância da coisa. Que se coloque no centro de um meio qualquer, fosse ele pequeno, parece imenso; que se coloque fora, parecerá todo outro. Tal que vê uma coisa do alto de uma montanha a acha insignificante, enquanto que, na base da montanha, lhe parece gigantesca.

Isto é um efeito de ótica, mas que se aplica igualmente às coisas morais. Ficai um dia inteiro no sofrimento, ele vos parecerá eterno; à medida que esse dia se afasta de vós, vos admirais de ter podido vos desesperar por tão pouco. Os pesares da infância têm também sua importância relativa, e, para a criança, são todos tão amargos quanto os da idade madura. Por que, pois, nos parecem tão fúteis? Porque não o somos mais, ao passo que a criança o é inteiramente, e não vê além de seu pequeno círculo de atividade; ela os vê do interior, nós os vemos do exterior. Suponhamos um ser colocado, em relação a nós, na posição em que estamos em relação à criança, ele julgará nossos cuidados do mesmo ponto de vista, e os achará pueris.

Um carreteiro é insultado por um carreteiro; eles discutem e se batem; que um grande senhor seja injuriado por um carreteiro, com isso não se crera ofendido, e não se baterá com ele. Por que isto? Porque se coloca fora de sua esfera: Crê-se de tal modo superior que a ofensa não pode atingi-lo; mas que ele desça ao nível de seu adversário, que se coloque, pelo pensamento, no mesmo meio, e se baterá.

O Espiritismo nos mostra uma aplicação desse princípio, se bem que de outro modo importante em suas conseqüências. Faz-nos ver a vida terrestre por aquilo que ela é, nos colocando no ponto de vista da vida futura; pelas provas materiais que dela nos fornece, pela intuição límpida, precisa, lógica que dela nos dá, pelos exemplos que coloca sob nossos olhos, e a ela nos transporta pelo pensamento: é vista, é compreendida; não é mais essa noção vaga, incerta, problemática, que se nos ensina do futuro, e que, involuntariamente, deixa dúvidas; para o Espírita, é uma certeza adquirida, é uma realidade.

Faz mais ainda: mostra-nos a vida da alma, o ser essencial, uma vez que é o ser pensante, remontando no passado a uma época desconhecida, e se estendendo indefinidamente no futuro, de tal sorte que a vida terrestre, fosse ela de um século, não é mais do que um ponto nesse longo percurso. Se a vida inteira é tão pouca coisa, comparada à vida da alma, que serão, pois, os incidentes da vida? E, no entanto, o homem, colocado no centro desta vida, com ela se preocupa como se devesse durar sempre; tudo toma para ele proporções colossais: a menor pedra que o choque lhe parece um rochedo; uma decepção o desespera; um fracasso o abate; uma palavra coloca-o furioso. Sua visão, limitada ao presente, ao que o toca imediatamente, lhe exagera a importância dos menores incidentes; um negócio não realizado lhe tira o apetite; uma questão de precedência é um negócio de Estado; uma injustiça coloca-o fora de si. Conseguir é o objetivo de todos os seus esforços, objeto de todas as suas combinações; mas, para a maioria, o que é conseguir? É, se não se tem do que viver, se criar, por meios honestos, uma existência tranqüila? E a nobre emulação de adquirir talento e desenvolver sua inteligência? É o desejo de deixar, depois de si, um nome justamente honrado, e realizar trabalhos úteis para a Humanidade? Não; conseguir, é superar seu vizinho, eclipsá-lo, é afastá-lo, transtorná-lo mesmo, para se colocar em seu lugar; e, por esse belo triunfo, do qual a morte não deixará talvez gozar vinte e quatro horas, que de cuidados, que de tributações! Quanto de gênio mesmo dispensa, algumas vezes, que teria podido ser mais utilmente empregado! Depois, quanto de raiva, quanto de insônias se não se triunfa! Que febre de ciúme causa o sucesso de um rival! Então, prende-se à sua má estrela, à sua sorte, à sua chance fatal, ao passo que a má estrela, o mais freqüentemente, é a imperícia e a incapacidade. Dir-se-á, verdadeiramente, que o homem toma a tarefa de tornar tão penosos quanto possível os poucos instantes que deve passar sobre a Terra, e dos quais não é senhor, uma vez que o dia de amanhã jamais está assegurado.

Quanto todas essas coisas mudam de face, quando, pelo pensamento, o homem sai do estreito vale da vida terrestre, e se eleva na radiosa, esplêndida e incomensurável vida de além-túmulo! Quanto então, toma em piedade os tormentos que se criou à toa! Quanto, então, lhe parecem mesquinhas e pueris as ambições, os ciúmes, as suscetibilidades, as vãs satisfações do orgulho! Parece-lhe da idade madura considerar as brincadeiras da infância; do alto de uma montanha, considerar os homens no vale. Partindo deste ponto de vista, torna-se, voluntariamente, o joguete de uma ilusão? Não; ao contrário, está na realidade, na verdade, e a ilusão, para ele, é quando vê as coisas do ponto de vista terrestre. Com efeito, não há ninguém sobre a Terra que não ligue mais importância ao que, para ele, deve durar muito tempo, do que ao que não deve durar senão um dia; que não prefere uma felicidade durável a uma alegria efêmera. Inquieta-se pouco com um desagrado passageiro; o que interessa acima de tudo é a situação normal. Se pois, eleva-se seu pensamento de modo a abarcar a vida da alma, forçosamente, chega-se a esta conseqüência, de que assim se percebe a vida terrestre como uma estação momentânea; que a vida espiritual é a vida real, porque ela é indefinida; que a ilusão é a de tomar a parte pelo todo, quer dizer, a vida do corpo, que não é senão transitória, pela vida definitiva. O homem que não considera as coisas senão do ponto de vista terrestre é como aquele que, estando no interior de uma casa, não pode julgar nem da forma, nem da importância do edifício; julga sobre as falsas aparências, porque não pode ver tudo; ao passo que aquele que vê de fora, só ele podendo julgar o conjunto, julga mais sadiamente.

Para ver as coisas desta maneira, dir-se-á, é preciso uma inteligência pouco comum, um espírito filosófico que não se saberia encontrar nas massas; de onde seria preciso concluir que, com poucas exceções, a Humanidade se arrastará sempre no terra-a-terra. É um erro; para se identificar com a vida futura não é preciso uma inteligência excepcional, nem grandes esforços de imaginação, porque cada um dela leva consigo a intuição e o desejo; mas a maneira pela qual se a apresenta, geralmente, é muito pouco sedutora, uma vez que oferece por alternativa as chamas eternas ou uma contemplação perpétua, o que faz com que muitos achem o nada preferível; de onde a incredulidade absoluta em alguns, e a dúvida na maioria. O que faltou até o presente foi a prova irrecusável da vida futura, e esta prova o Espiritismo vem dá-la, não mais por uma teoria vaga, mas por fatos patentes. Bem mais, mostra tal como a razão, a mais severa, pode aceitá-la, porque explica tudo, justifica tudo, e resolve todas as dificuldades. Por isso mesmo é que ela é clara e lógica, e está ao alcance de todo o mundo; eis porque o Espiritismo conduz à crença tantas pessoas que dela tinham se afastado. A experiência demonstra, cada dia, que o simples artesão, que os camponeses sem instrução, compreendem esse raciocínio sem esforços; colocam-se nesse novo ponto de vista tanto mais de boa vontade quanto nele encontram, como todas as pessoas infelizes, uma imensa consolação, e a única compensação possível em sua penosa e laboriosa existência.

Se esta maneira de encarar as coisas terrestres se generalizasse, não teria por conseqüência destruir a ambição, estimulando grandes empreendimentos, trabalhos mais úteis, mesmo obras de gênio? Se a Humanidade inteira não pensasse mais senão na vida futura tudo não periclitaria neste mundo? Que fazem os monges nos conventos, se não é se ocupar exclusivamente do céu? Ora, em que se tornaria a Terra se todo mundo se fizesse monge?

Um tal estado de coisas seria desastroso, e os inconvenientes maiores do que se pensa, porque os homens a perderiam sobre a Terra e não ganhariam nada dela no céu; mas o resultado do princípio que expomos é inteiramente outro para quem não a compreenda pela metade, assim como a explicamos.

A vida corpórea é necessária ao Espírito, ou à alma, o que é a mesma coisa, para que possa cumprir no mundo material as funções que lhe são destinadas pela Providência: é um dos órgãos da harmonia universal. A atividade que está forçada a desdobrar nas funções que exerce com o seu desconhecimento, crendo não agir senão por si mesma, que ajuda o desenvolvimento de sua inteligência e facilita seu adiantamento. A felicidade do Espírito na vida espiritual, sendo proporcional ao seu adiantamento e ao bem que pôde fazer como homem, disso resulta que quanto mais a vida espiritual adquire importância aos olhos do homem, mais ele sente a necessidade de fazer o que for possível para nela assegurar o melhor lugar possível. A experiência daqueles que viveram vem provar que uma vida terrestre inútil ou mal empregada é sem proveito para o futuro, e que aqueles que não procuram neste mundo senão as satisfações materiais as pagam bem caro, seja pelos seus sofrimentos no mundo dos Espíritos, seja pela obrigação, em que estão, de recomeçar sua tarefa em condições mais penosas do quê no passado, e tal é o caso de muitos daqueles que sofrem sobre a Terra. Portanto, considerando as coisas deste mundo do ponto de vista extra-corpóreo, o homem, longe de ser excitado pela negligência e pela ociosidade, compreende melhor a necessidade do trabalho. Falando do ponto de vista terrestre, esta necessidade é uma injustiça, aos seus olhos, quando se compara com aqueles que podem viver sem fazer nada: tem-lhes ciúme, os inveja. Falando do ponto de vista espiritual, esta necessidade tem sua razão de ser, sua utilidade, e a aceita sem murmurar, porque compreende que, sem trabalho, ficaria indefinidamente na inferioridade e privado da felicidade suprema a que aspira, e que não saberia esperar se não se desenvolve intelectualmente e moralmente. Sob este aspecto, muitos monges nos parecem mal compreenderem o objetivo da vida terrestre, e ainda menos as condições da vida futura. Pela seqüestração, se privam dos meios de se tornarem úteis aos seus semelhantes, e muitos daqueles que estão hoje no mundo dos Espíritos, nos confessaram estar estranhamente enganados, e sofrer as conseqüências de seus erros.

Este ponto de vista tem para o homem uma outra conseqüência imensa e imediata: é a de lhe tornar mais suportáveis as tribulações da vida. Que ele procure se proporcionar o bem-estar, a passar o mais agradavelmente possível o tempo de sua existência sobre a Terra, é muito natural e nada o proíbe. Mas, sabendo que não está neste mundo senão momentaneamente, que um futuro melhor o espera, atormenta-se pouco com as decepções que experimenta, e, vendo as coisas do alto, toma seus fracassos com menos amargura; permanece indiferente aos tormentos dos quais é alvo da parte dos invejosos e dos ciumentos; reduz ao seu justo valor os objetos de sua ambição, e se coloca acima das pequenas suscetibilidades do amor-próprio. Livre dos cuidados que se crê o homem que não sai de sua estreita esfera, pela perspectiva grandiosa que se abre diante dele, não é senão mais livre para se entregar a um trabalho proveitoso para si mesmo e para os outros. As afrontas, as diatribes, as maldades de seus inimigos não são para ele senão imperceptíveis nuvens num imenso horizonte; não se inquieta mais do que as moscas que zumbem aos seus ouvidos, porque sabe que delas logo estará livre; também todas as pequenas misérias que se lhe suscita, escorregam sobre ele como a água sobre o mármore. Colocando-se do ponto de vista terrestre, com isso se irritaria, disso se vingaria talvez; do ponto de vista extra-terrestre, os despreza como salpicos de um mal-estar passageiro. Esses são espinhos lançados sobre sua senda, e sobre os quais passa, sem mesmo se dar ao trabalho de afastá-los, para não demorar sua caminhada para o objetivo mais sério que se propôs alcançar. Longe de querer o mesmo aos seus inimigos, ele lhes sabe agradecer por fornecer-lhe a ocasião de exercer a sua paciência a e sua moderação, em proveito de seu adiantamento futuro, ao passo que disso perderia o fruto se se rebaixasse em represálias. Lamenta-os por se darem a tantas penas inúteis, e se diz que são eles mesmos que caminham sobre os espinhos pelos cuidados que tomam para fazer o mal. Tal é o resultado da diferença do ponto de vista sob o qual se considera a vida: um vos dá confusões e ansiedade; o outro a calma e a serenidade. Espíritas que sentis decepções, deixai um instante a Terra, pelo pensamento; subi às regiões do infinito e olhai do alto: vereis o que elas serão.

Diz-se algumas vezes. Vós que sois infelizes, olhai abaixo de vós e não acima, e com isso vereis mais infelizes ainda. Isto é muito verdadeiro, mas muitas pessoas se dizem que o mal dos outros não cura o seu. O remédio não está sempre senão na comparação, e ocorre para os quais é difícil não olhar para o alto e dizer-se: "Por que este tem o que não tenho?" Ao passo que se colocando no ponto de vista do qual falamos, aquele em que, forçosamente, estaremos um pouco à frente, se está, muito naturalmente, acima daqueles que poderíamos invejar, porque, daí, os maiores parecem bem pequenos.

Lembramo-nos de ter visto representar no Odéon, há uns quarenta anos, uma peça em um ato, intitulada lês Ephémères, não sabemos mais de que autor; mas, embora jovem então, ela nos causou uma viva impressão. A cena se passava no país dos Ephémères, cujos habitantes não vivem senão vinte e quatro horas. No espaço de um ato, se os vê passar do berço à adolescência, à juventude, à idade madura, à velhice, à decrepitude e à morte. Nesse intervalo, cumprem todos os atos da vida: batismo, casamento, negócios civis e governamentais, etc.; mas como o tempo é curto e as horas contadas, é preciso se apressar; também tudo se faz com uma rapidez prodigiosa, o que não lhes impede de se ocupar de intrigas, e de se darem muito trabalho para satisfazer sua ambição, e se superarem uns aos outros. Esta peça, como se vê, encerrava um pensamento profundamente filosófico, e involuntariamente o espectador, que via num instante se desenrolar todas as fases de uma existência bem cheia, se punha a dizer: Quanto essas pessoas são tolas em se darem tanto mal por tão pouco tempo que têm para viver! Que lhes resta das confusões de uma ambição de algumas horas? Não fariam melhor viverem em paz?

Está bem aí o quadro da vida humana vista do alto. A peça, no entanto, não viveu pouco mais que seus heróis: não foi compreendida. Se o autor vivesse ainda, o que ignoramos, provavelmente hoje seria espírita.

A.K.

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