segunda-feira, 20 de junho de 2016

O Espírito de Verdade e o Espiritismo

Em uma reunião mediúnica, realizada em 11 de dezembro de 1855[1], ainda na fase inicial dos estudos que culminariam na publicação da obra “O Livro dos Espíritos” sob o pseudônimo Allan Kardec, o prof. Hippolyte Léon Denizard Rivail fez uma pergunta sobre o seu espírito protetor[2] e recebeu a resposta de que se tratava de um espírito que fora um homem justo e sábio. Posteriormente, em reunião realizada em 25 de março de 1856, quando perguntado sobre sua identidade, o espírito informou que “para ti, me chamarei A Verdade” (Pour toi, je m´appellerai La Verité). Diante da insistência do prof. Rivail, o espírito reitera “disse-te que para ti, eu era A Verdade. Não irás saber mais nada”.

O livro “Obras Póstumas” contém ainda outras anotações sobre este espírito e seu papel junto a Allan Kardec. Para aferir sua importância para o Espiritismo, basta apenas lembrar que, entre os nomes de espíritos que assinaram o “Prolegômenos” do Livro dos Espíritos, está registrado o Espírito de Verdade (“L´Esprite de Veritê”).

Muito tem sido escrito e falado sobre a identidade do “Espírito de Verdade” e sobre os motivos que o levaram a ocultar o nome próprio. De concreto, pelo que ficou registrado nas obras de Allan Kardec e na Revista Espírita, o que se pode dizer é que se tratava do espírito de um ilustre filósofo da antiguidade[3] e que a falange de espíritos aos quais devemos a Doutrina Espírita, estava sob sua direção. É provável que ao adotar um pseudônimo, da mesma forma que o próprio Prof. Rivail o fez, ele tenha evitado discussões que tirariam o foco do que importava, a essência dos ensinamentos que formam a Doutrina Espírita.

Naturalmente, pesquisadores e espíritos, ao longo do tempo optaram por uma identificação ou outra, como, por exemplo, fez o espírito Mélanchthon. É dele a introdução do livro “Reflexos da Vida Espiritual” (“Rayonnements de la Vie Spirituelle”), com mensagens mediúnicas recebidas pela médium Mme. W. Krell, entre as quais, a “Prece de Cáritas”. Na introdução, ele fala sobre o espírito que chamamos de Cristo e diz que “este espírito foi por diversas vezes um desses missionários zelosos, um destes seres cujo devotamento puro devia imprimir na vossa Terra um traço indelével” e “Espíritas, é ao Espírito da Verdade, como ele se nomeia hoje, que devem se dirigir vossas homenagens”.

Deixando um pouco de lado a identidade do Espírito, que de fato não é tão importante assim, pois não modifica a elevação dos seus ensinamentos, nem o seu papel no surgimento do Espiritismo, vale a pena pensar um pouco na escolha do pseudônimo “A Verdade”.

O nome escolhido tem um relacionamento evidente com a passagem no evangelho de João (16:13) que anuncia o advento do Paracleto, o Espírito de Verdade, que nos “guiará em toda a verdade, pois não falará de si mesmo, mas falará o quanto ele ouvir, e vos anunciará”, e posiciona o Espiritismo na continuidade da Boa Nova de Jesus.

No contexto histórico, para a França do século XIX, deslumbrada com as conquistas da ciência e da tecnologia, muita próxima ainda dos excessos anti-clericais da Revolução Francesa[4] e berço do Positivismo[5], este pseudônimo sintetizou um programa de trabalho.

Sob a orientação do Espírito de Verdade, os ensinamentos de Jesus, “o caminho, a verdade e a vida”, se tornariam a base moral sobre a qual se assentou o Espiritismo. O Espiritismo se apresenta como o Cristianismo Redivivo, Cristão, como os cristãos dos primeiros tempos, dos tempos antes que a política imperial romana e as sutilezas teológicas complicassem a mensagem de fé e caridade do homem de Nazaré. Cristão, pois tem a Jesus como guia e modelo para a humanidade[6].

Muita Paz,

Carlos A. I. Bernardo

Observações
[1] As referências sobre as reuniões mediúnicas foram retiradas das “Obras Póstumas”. As reuniões mencionadas neste post foram realizadas na casa do Sr. Baudin e as médiuns eram suas duas filhas, Caroline e Julie. Canuto Abreu, em sua obra “O Primeiro Livro dos Espíritos”, informa que em agosto de 1855, época em que começaram as reuniões, Caroline Baudin tinha 16 anos e sua irmã Julie 14 anos.

[2] A pergunta feita ao espírito Zéfiro foi “Há no mundo dos Espíritos algum que seja meu gênio bom?”.

[3] “Tendo eu interrogado esse Espírito, ele se deu a conhecer sobre um nome alegórico (eu soube depois, por outros Espíritos, que fora o de um ilustre filósofo da antiguidade)”. Allan Kardec, em trecho do item Manifestações Espontâneas, no Cap. II – Manifestações Espíritas, do livro Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas, incluído pela EDICEL no volume Iniciação Espírita.

[4] Durante a Revolução Francesa, além de desapropriações de propriedades da Igreja e perseguições aos religiosos, ocorreram outras ações que procuraram combater a influência do Cristianismo na sociedade, foi até mesmo instituído um culto a razão como religião laica. Vide por exemplo, os estudos de Bernard Plangeron, “As Religiões Perseguidas” e a “Descristianização”, na obra “A França Revolucionária”.

[5] Doutrina Filosófica sistematizada por Augusto Comte em seu “Cours de Philosophie Positive”, publicado em seis volumes, entre 1830 e 1842. “O Positivismo é, pois, uma filosofia determinista que professa, de um lado, o experimentalismo sistemático, e de outro considera anticientífico todo estudo das causas finais.” (João Ribeiro Junior).

[6] vide questão 625 do Livro dos Espíritos.

Bibliografia
Abreu, Silvino Canuto (trad.). O Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec. São Paulo: Companhia Editora Ismael, 1957.

Dias, Haroldo Dutra (trad.). O Novo Testamento. Brasília: FEB, 2013.

Júnior, João Ribeiro. Augusto Comte e o Positivismo. Campinas: Edicamp, 2003.

Kardec, Allan. Iniciação Espírita (contendo três obras do Codificador). Traduções de Joaquim da Silva Sampaio Lobo e Cairbar Schutel. Sobradinho-DF: EDICEL, 1995.

___. O Livro dos Espíritos. Tradução de Evaldo Noleto Bezerra. Edição comemorativa dos 150 anos. Brasília: FEB, 2007.

___. Obras Póstumas. Tradução de Sylvia Mele Pereira da Silva e notas de J. Herculano Pires. Obras Completas de Allak Kardec. São Paulo: EDICEL, 1971.

Krell, W (médium). Reflexos da Vida Espiritual. Tradução de Maria Lucia Alcantara de Carvalho. Rio de Janeiro: CELD, 2002.

Vovelle, Michel. A França Revolucionária. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989.

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