O argueiro e a trave no olho
Por que vês tu, pois, o argueiro no olho do teu irmão, e não vês a trave no teu olho? Ou como dizes a teu irmão: Deixa-me tirar-te do teu olho o argueiro, quando tens no teu uma trave? Hipócrita, tira primeira a trave do teu olho, e então verás como hás de tirar o argueiro do olho de teu irmão. (Mateus, VII: 3-5)
Como ler o texto acima e não pensar em reforma íntima? É disso que fala a passagem evangélica. Trata também de nosso comportamento perante as imperfeições dos nossos semelhantes, nossos irmãos. Uma leitura apressada poderia sugerir que o Mestre Jesus condena qualquer conduta no sentido de apontar ou indicar a alguém alguma imperfeição sua, no campo moral, notadamente.
Será esse um raciocínio correto? Vejamos como Allan Kardec abordou o tema em “O Evangelho Segundo o Espiritismo” – Cap. X – Bem-aventurados os misericordiosos, com esclarecimentos do Espírito São Luiz (item 19 e seguintes):
Ninguém sendo perfeito, seguir-se-á que ninguém tem o direito de repreender o seu próximo?
Certamente que não é essa a conclusão a tirar-se, porquanto cada um de vós deve trabalhar pelo progresso de todos e, sobretudo, daqueles cuja tutela vos foi confiada. Mas, por isso mesmo, deveis fazê-lo com moderação, para um fim útil, e não, como as mais das vezes, pelo prazer de denegrir. Neste último caso, a repreensão é uma maldade; no primeiro, é um dever que a caridade manda seja cumprido com todo o cuidado possível. Ao demais, a censura que alguém faça a outrem deve ao mesmo tempo dirigi-la a si próprio, procurando saber se não a terá merecido. – S. Luís. (Paris, 1860.)
Será repreensível notarem-se as imperfeições dos outros, quando daí nenhum proveito possa resultar para eles, uma vez que não sejam divulgadas?
Tudo depende da intenção. Decerto, a ninguém é defeso ver o mal, quando ele existe. Fora mesmo inconveniente ver em toda a parte só o bem. Semelhante ilusão prejudicaria o progresso. O erro está no fazer-se que a observação redunde em detrimento do próximo, desacreditando-o, sem necessidade, na opinião geral. Igualmente repreensível seria fazê-lo alguém apenas para dar expansão a um sentimento de malevolência e à satisfação de apanhar os outros em falta. Dá-se inteiramente o contrário quando, estendendo sobre o mal um véu, para que o público não o veja, aquele que note os defeitos do próximo o faça em seu proveito pessoal, isto é, para se exercitar em evitar o que reprova nos outros. Essa observação, em suma, não é proveitosa ao moralista? Como pintaria ele os defeitos humanos, se não estudasse os modelos? – S. Luís. (Paris, 1860.)
Haverá casos em que convenha se desvende o mal de outrem?
É muito delicada esta questão e, para resolvê-la, necessário se toma apelar para a caridade bem compreendida. Se as imperfeições de uma pessoa só a ela prejudicam, nenhuma utilidade haverá nunca em divulgá-la. Se, porém, podem acarretar prejuízo a terceiros, deve-se atender de preferência ao interesse do maior número. Segundo as circunstâncias, desmascarar a hipocrisia e a mentira pode constituir um dever, pois mais vale caia um homem, do que virem muitos a ser suas vítimas. Em tal caso, deve-se pesar a soma das vantagens e dos inconvenientes. – São Luís. (Paris, 1860.)
Como bem explicou São Luiz, tudo é uma questão de intenção e modos de fazer. Enxergar em alguém suas imperfeições não está vetado, demonstrá-la ao seu detentor pode até ser um ato de caridade. Mas é necessário ter habilidade para tal, saber se será bem compreendido, buscando conhecer a pessoa e suas susceptibilidades (sensibilidade à crítica). Para tanto, algumas empresas e organizações ministram treinamentos aos funcionários, ensinando a arte da crítica bem feita, o famoso feedback. Imagine como seria difícil para uma instituição estimular o desenvolvimento e a evolução de seus funcionários se a crítica e o feedback fossem proibidos para evitar susceptibilidades?
Também faz parte desse aprendizado a auto-análise, buscar conhecer a si mesmo, procurar saber se a imperfeição que se quer apontar no outro também não se encontra em si mesmo (e quase sempre está lá), a fim de realizar a auto-crítica com amor, com indulgência, buscando compreender porque ela, a imperfeição, faz-se presente no íntimo. Fazendo isso, entendendo seus próprios processos mentais e psicológicos, algo possível se a auto-análise é sincera, abre-se a oportunidade chegar no próximo, apontar-lhe o cisco do olho com amor e compreensão.
Ora, se teu irmão pecar contra ti, vai, e repreende-o em particular; se te ouvir, ganhaste a teu irmão [Mateus 18:15]
Sem esse processo, é melhor nem arriscar a crítica, para não dar ensejo à mágoas e desentendimentos. É recomendável, antes de tudo, aprender a auto-análise e a autocrítica, dominar suas técnicas a contento e, quem sabe, fazer um curso de feedback (com certeza irá ajudar).
Uma crítica bem feita, com amor e compreensão, não magoa nem ofende, ao contrário, é sinal de verdadeira e sincera amizade.
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