domingo, 10 de julho de 2016

A indulgência e a salvação

A indulgência e a salvação

Por Dineu de Paula

Espiritismo adota a divisa “Fora da caridade não há salvação”.  Há nessa máxima dois conceitos principais, cujo conteúdo é preciso desvendar: caridade e salvação.

Quanto ao conceito de salvação da alma, o Espírito Emmanuel, mediante a psicografia de Francisco Cândido Xavier, no livro O Consolador, questão nº 225, assim a enuncia: “Dentro das claridades espirituais que o Consolador vem espalhando nos bastidores religiosos e filosóficos do mundo, temos de traduzir o conceito de salvação por iluminação de si mesmo, a caminho das mais elevadas aquisições e realizações no infinito.”

A conceituação não poderia ser mais feliz. Do conjunto da obra de Kardec, surge clara a ideia de que o aprimoramento é tarefa individual de cada Espírito, tendo como meta final a condição de Espírito puro. Os Espíritos mais elevados incentivam e auxiliam o progresso dos que seguem na retaguarda, mas cada qual ilumina e, pois, salva a si mesmo. A evolução é pessoal e intransferível – a cada um segundo suas obras.

Quando conquista o estado de pureza, o Espírito deixa de experimentar a influência da matéria e não tem mais de sofrer provas ou expiações. Realiza a vida eterna no seio de Deus, como seu mensageiro e ministro, no gozo de inalterável felicidade. Trata-se de um estado glorioso, inconcebível para quem dele ainda se acha distante.

A salvação, segundo essa concepção, constitui a meta para a qual todos os Espíritos foram criados, o seu maravilhoso destino final. Como condição de sua conquista, o Espiritismo estabelece a caridade. Tendo em mira que se trata de algo com o condão de afastar o sofrimento e produzir felicidade e plenitude, todos têm o maior interesse em entendê-la e praticá-la.

Objetivando obter o melhor conceito de caridade, na questão nº 886 de O livro dos Espíritos, Kardec indaga à espiritualidade superior qual o verdadeiro sentido dessa palavra, segundo a entendia Jesus. Obtém a seguinte resposta: “Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas”.

Como se vê, a caridade é composta por três virtudes: benevolência, indulgência e perdão. Considerando que o objeto deste trabalho cinge-se à indulgência, nele não serão abordadas as outras duas virtudes.

Consoante se infere da Codificação, a indulgência implica fazer um juízo suave das fissuras morais alheias, do que os outros fazem ou são e que parece errôneo. É uma questão de valorizar o bem, em vez do mal, e de temperar com uma certa doçura o próprio refletir sobre o semelhante.

Ela se liga diretamente ao raciocínio, ao modo como se processam no íntimo do homem as impressões que ele tem do outro, como ele julga as imperfeições alheias.

Quando se fala em julgamento, logo vem à mente a famosa frase de Jesus: “Não julgueis, para que não sejais julgados.” (Mateus: 7:1). Com base nessa assertiva, parece que todo e qualquer julgamento é um erro. Ocorre ser impossível viver tingue a raça humana no conjunto da criação e não parece desejável que se abdique dela, especialmente quando se tem em mente o caráter racional do Consolador prometido pelo Cristo, o Espiritismo. Assim, quando Jesus exorta a que não se julgue, a exortação não parece ser em sentido absoluto, mas apenas a que não se julgue de certa maneira (com severidade).

Essa interpretação nada tem de arbitrária e se revela coerente e possível em variadas outras passagens evangélicas. Por exemplo, no Sermão da Montanha, Jesus afirma a bem-aventurança dos que sofrem e choram. Ora, em um mundo de provas e expiações, como é a Terra, absolutamente todos sofrem e choram, em maior ou menor grau. Não se há de imaginar que sejam bem-aventurados os que sofrem entre murmúrios de revolta e blasfemando contra Deus. Bem-aventurado é quem sofre bem, com dignidade, sem revolta, e não todo e qualquer sofredor.

Então, não é interdito refletir sobre os equívocos alheios, em sentido absoluto. Aliás, na questão nº 629 de O livro dos Espíritos consta que “a moral é a regra de bem proceder, isto é, de distinguir o bem do mal. (…)”. Para distinguir o bem e o mal é preciso refletir sobre eles, mesmo quando presentes no proceder dos semelhantes. Essa análise pode impulsionar a evolução da criatura, ao discernir o que não lhe convém, inclusive pelas consequências verificadas na vida alheia. Na questão nº 635 de O livro dos Espíritos, está expresso que Deus deu a inteligência para o homem distinguir por si mesmo o bem do mal.

Nessa linha, no Capítulo X de O Evangelho segundo o Espiritismo, item nº 20, afirma-se: “(…), a ninguém é defeso ver o mal, quando ele existe. Fora mesmo inconveniente ver em toda a parte só o bem. Semelhante ilusão prejudicaria o progresso.”

Contudo, se não é defeso refletir a respeito das fissuras morais alheias, em um contexto cristão isso apenas pode dar-se sob o influxo da indulgência. Ela implica fazer um juízo suave, lançar um olhar generoso ao próximo. Em mundo ainda inferior, todos têm luz e sombra em seu íntimo, todos possuem virtudes e vícios. A indulgência pressupõe valorizar o bem em vez do mal, relevar os equívocos e compreender a fragilidade natural de todo ser humano.

Trata-se de uma medida prudente, tendo em mira a afirmação de Jesus de que cada um será medido com a medida que aplicar aos outros (Mateus: 7:2). Toda a lei divina encontra-se inscrita na consciência de cada ser, que funciona como juiz da própria conduta. Quem se habitua a analisar severamente os erros do próximo molda em seu íntimo um juiz implacável. Quando chegar a hora de prestar contas à Eterna Justiça, as medidas desse severíssimo censor é que lhe serão aplicadas. A respeito, o seguinte trecho de O Evangelho segundo o Espiritismo: “Sede indulgentes com as faltas alheias, quaisquer que elas sejam; não julgueis com severidade senão as vossas próprias ações e o Senhor usará de indulgência para convosco, como de indulgência houverdes usado para com os outros” (Capítulo X, item 17, primeira parte). Como ninguém suporta um olhar muito severo sobre suas fraquezas, importa treinar um olhar generoso sobre as fissuras morais alheias, até como medida de autopreservação.

Nesse mesmo capítulo do Evangelho segundo o Espiritismo, no item 16, há uma interessante dissertação de José, Espírito Protetor, a respeito da indulgência. Ele afirma que a indulgência não vê os defeitos de outrem, mas, se os vê, evita falar deles. Ao contrário, oculta-os. Se a malevolência os descobre, encontra escusa plausível e séria para eles, não uma visivelmente falsa, a fim de mais os evidenciar. Observa-se aí um genuíno esforço em valorizar o bem que há no próximo, perante si mesmo e perante terceiros. Faz-se efetiva opção de ver o semelhante de forma positiva, considerá-lo digno e valioso, malgrado seus problemas.

A mensagem também fala que a indulgência consiste em um sentimento doce e fraternal que todo homem deve alimentar para com seus irmãos. A doçura remete à ideia de sabor agradável. O sentimento da indulgência é suave, saboroso, tranquilizador e fraterno, próprio de irmãos, de seres que se gostam, que se sentem ligados. Nada tem de amargor e de ásperas reprimendas.

É especialmente esclarecedor o último parágrafo da mensagem: “Sede indulgentes, meus amigos, porquanto a indulgência atrai, acalma, ergue, ao passo que o rigor desanima, afasta e irrita.”

Trata-se de uma eloquente verdade, pois ninguém aprecia ficar perto de uma pessoa severa, que só percebe e valoriza os defeitos alheios. É desagradável sentir-se criticado, não apreciado, sem falar que ter as próprias dificuldades ressaltadas desanima, a ponto de muitas vezes surgir o raciocínio de que nada mais há para fazer: é-se um caso perdido!

Ao contrário, quando as virtudes de alguém são valorizadas, ele se considera digno e ganha forças para ser melhor e lutar contra suas fraquezas, que se tornam apenas um detalhe. A indulgência sacia a sede de compreensão e acalma o coração por vezes atormentado pela culpa. Ela atrai quem mais necessita de amparo e compreensão. E especialmente ergue em direção ao refazimento do caminho, à reparação dos erros praticados.

O esforço em ver o próximo de forma positiva torna mais fácil gostar dele e estabelecer vínculos de genuína fraternidade, na medida em que ninguém almeja ser amigo de réprobos, mas, sim, de criaturas dignas.

Pode-se concluir que a indulgência, além de se inserir no âmbito maior da salvação do Espírito, rumo ao seu angelical destino, também possui o condão de salvar os relacionamentos humanos, ao conduzi-los a um patamar saudável de auxílio e amparo mútuos. Ela salva o coração do homem da indiferença e da severidade.

A indulgência, como componente da caridade, não é só a meta (a libertação final, fruto da vivência perfeita), mas também o caminho, ao viabilizar a fraternidade entre seres ainda imperfeitos, mas que sonham com a perfeição e precisam se auxiliar em sua caminhada.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. BÍBLIA. Português. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995.

2. EMMANUEL (Espírito) / Francisco Cândido Xavier. O Consolador. 25ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2004.

3.  KARDEC, Allan. Tradução de Guillon Ribeiro. O Evangelho segundo o Espiritismo. 3ª ed. especial. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2005.

4. KARDEC, Allan. Tradução de Guillon Ribeiro. O livro dos Espíritos. 1ª ed. especial. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2005.

Nenhum comentário:

Postar um comentário