quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Uma fatalidade difícil de entender


POR JAIR DO COUTO

Na década de 1980, o aterro sanitário funcionava a céu aberto. Muitas famílias carentes tiravam dali o seu sustento. A sopa fraterna era preparada também aos sábados e era servida no lixão, como era chamado o aterro sanitário naquela época.

Em um sábado, servimos a sopa e retornávamos ao centro quando fomos informados de um grave acidente. Alguém veio chamar a Belinha – é como vamos chamá-la –, que estava ajudando na preparação da sopa. Um motorista alcoolizado perdeu o controle do carro ao descer uma rua em frente à sua casa, arrebentou uma cerca e atropelou dois filhos seus que brincavam no jardim. Um morreu na hora e o outro foi para o Hospital Universitário em estado grave.

Ficamos arrasados.

É uma fatalidade, dizem uns; é o destino, dizem outros. Mas não tem explicação, na opinião de grande maioria.

O Espiritismo ensina a lei de causa e efeito ligada à reencarnação.

O Livro dos Espíritos destaca, nas questões 843 a 868 a relação do livre-arbítrio com a fatalidade. Todos dispomos de livre-arbítrio para pensar e agir, e naturalmente somos responsáveis pelas escolhas feitas. Daí nasce a fatalidade.

Segundo o espírito Emmanuel, no livro Nascer e renascer, “somos herdeiros do nosso pretérito e, nessa condição, arquitetamos nossos próprios destinos. É por isso que fatalidade e livre arbítrio coexistem nos mínimos ângulos de nossa jornada planetária. Geramos causas de dor ou alegria, de saúde ou enfermidade em variados momentos de nossa vida. O mapa de regeneração volta conosco ao mundo, consoante as responsabilidades por nós mesmos assumidas no pretériro remoto e próximo; contudo, o modo pelo qual nos desvencilhamos dos efeitos de nossas próprias obras facilita ou dificulta nossa marcha redentora que o mundo oferece”.

Para a Doutrina Espírita, a Justiça Divina envolve um conjunto de normas aplicadas conforme a nossa necessidade. Não é o castigo de Deus, como se costuma dizer. Onde enxergamos fatalidade, pela ótica espiritual é a misericórdia divina concedendo mais uma etapa de reparação de nossas faltas. A cada um segundo as suas obras, disse Jesus.

Retornemos à narrativa.

Mais tarde, fomos à casa de Belinha. Estávamos conversando com o marido dela quando ela entrou. Chegava do hospital e muitos perguntavam sobre o estado do menino internado. Chegando onde estávamos e com ar não sei se de tristeza ou decepção, disse: “E agora, o que o senhor me fala? O que o senhor me diz do Evangelho?”

O que responder num momento como esse?

Voltamos no dia seguinte com outros companheiros da casa espírita para o Evangelho no Lar solicitado por Belinha.

Ainda estávamos abalados e não sabíamos o que falar. A sala, cozinha e corredor estavam lotados.

Via de regra, nesses momentos solenes, fazemos a escolha de algumas palavras na abertura para a preparação da leitura do Evangelho. Pulamos esta parte, abrimos O Evangelho Segundo o Espiritismo e ali estava: “Perda de pessoas amadas. Mortes prematuras”1.

O texto não foi lido. Fechamos o Evangelho e solicitamos que uma companheira do grupo fizesse a abertura e lesse um texto. A nossa companheira tomou o Evangelho, abriu ao acaso e começou a leitura: “Perda de pessoas amadas. Mortes prematuras” Ali estavam todas as palavras que gostaríamos e que deveríamos falar à Belinha, aos seus familiares e a todos os presentes ao velório daquela criança inocente. Inocente pela nossa ótica, porém, acreditamos que pela visão espiritual, tratava-se do resgate de um espírito em débito com a Lei Divina e com a própria consciência.


1 O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo V, item 21.

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