segunda-feira, 25 de outubro de 2010

"MUITOS PECADOS LHE SÃO PERDOADOS, PORQUE MUITO AMOU"

Rohden, Huberto (Filosofia Cósmica do Evangelho), Ed. Alvorada. 1982. São Paulo. Pág. 73-78




A atitude de Jesus em face do sexo feminino é algo inteiramente inédito na história da Humanidade, revelando, mais que outra coisa qualquer, a grandeza cós­mica do Nazareno.
Para o homem comum, há três atitudes possíveis em face da mulher: 1) adoração; 2) desprezo; 3) indiferença.
       Nenhuma dessas três atitudes caracteriza a pessoa de Jesus.
O homem que adora a mulher, o "eterno feminino", considera-a como uma espécie de divindade, e a si mesmo como um humilde escravo dessa deusa.
O homem que despreza a mulher serve-se dela, geralmente como de um instrumento para satisfazer os seus instintos masculinos, e esse desprezo é, comumente, chamado "amor". Quase tudo que, no domínio da nossa literatura romântica, nas películas de cinema e na vida social passa por "amor", é simples sexualismo, mais ou menos bem disfarçado em afeição. Servir­ se duma pessoa para satisfazer o seu egoísmo sexual é desprezar essa pessoa, porque ela nos serve apenas como um meio para um fim alheio ao valor humano dela.
À margem dos adoradores e desprezadores da mulher. vivem os homens que professam atitude de indiferença em face do sexo feminino, espécie de neutralidade psíquica, que tanto pode provir de uma natural deficiência do homem não plenamente masculino, como também pode ser uma "virtude" ascética laboriosa­mente adquirida. E, neste último caso, a "frieza" sexual do homem ascético é o resultado de um secreto medo e duma inconfessada fraqueza que ele sente em face da mulher, o secreto receio de sucumbir aos encantos de alguma Beatriz ou às seduções de uma Circe, receio quiçá inconsciente, que leva esses homens a se revestirem duma couraça de gelo, a fim de manterem distante o fogo de algum vulcão feminino.
Não encontramos em Jesus nenhuma dessas três atitudes em face de Eva: nem adoração, nem desprezo, nem indiferença. E, o estranho é que quase todas as figuras femininas do Evangelho que cruzam os caminhos do Nazareno têm fama de impuras: a Madalena, pecadora pública possessa de sete demônios; a samaritana, que casara cinco vezes e vivia, nesse tempo, com um homem que nem era seu marido; a mulher adúltera apanhada em flagrante.
A mais famosa dessas mulheres pecadoras é, sem dúvida, a formosa estrela de Magdala, que adquiriu excepcional celebridade, como qualquer miss dos nossos tempos, não só nas páginas do Evangelho e. na história do Cristianismo, como também na literatura mundial e na arte.
Pouco sabemos da vida ulterior da samaritana e da mulher adúltera absolvida por Jesus. Muita coisa, a coisa gloriosa, sabemos daquela que, após a sua "conversão", se tornou a mais ardente discípula do Nazareno.
A teologia eclesiástica de Roma popularizou o conceito, hoje quase proverbial, de que a maior das virtudes seja a castidade, ou, mais especificamente, a virgindade duma pessoa. Desde que, no século XI, o celibato clerical se tornou obrigatório nessa igreja, era lógico que à virgindade fosse conferida a primazia entre todas as virtudes, uma vez que era (ou pelo menos devia ser) a virtude clássica do sacerdote celibatário; e como o sacerdote é apontado ao leigo como a quintessência da espiritualidade e do Cristianismo, era evidente que tanto mais espiritual e cristã era uma pessoa quanto mais virginal.
Entretanto, Jesus nada sabe dessa primazia da virgindade. Para ele, o amor é a maior das virtudes, a quintessência do Cristianismo, a perfeição máxima do homem e da mulher, o amor puro e universal que ele recomenda a seus discípulos como supremo distintivo do seu Evangelho. Não mandou a seus apóstolos que fossem celibatários, mas que se amassem uns aos outros. Quando o doutor da lei quis saber qual era o mandamento maior da lei, não cantou o Nazareno as excelências da virgindade, mas sim a apoteose do amor.
A mais gloriosa página escrita por São Paulo – ­aliás considerado antifeminista e advogado do celibato – é o capítulo 13 da primeira Epístola aos Coríntios e essa página não enaltece a virgindade, mas o amor.
A Madalena era tudo, menos virgem. Disto sabia Jesus. E, no entanto, ele a aceita publicamente como sua genuína discípula e a defende contra as impiedosas invectivas do ascético fariseu Simão e até contra as críticas dos seus próprios discípulos. Mais tarde, concede-lhe o privilégio único da sua primeira visita na madrugada da primeira Páscoa, e incumbe-a explicita­mente de servir de primeira mensageira oficial da ressurreição perante os discípulos.
Segundo certas teologias ascéticas de hoje, é tudo isto estranho; mas para Jesus o amor é tudo menos  aquilo que os homens mundanos costumam chamar amor, é um amor puro e dinâmico que destrói tudo que o pseudo-amor impuro construiu na vida humana, assim como um violento incêndio reduz a cinzas e fumaças qualquer quantidade de combustível.
E, o que é sumamente fascinante, a própria Ma­dalena compreende intuitivamente esse espírito de Jesus e sua nova atitude em face dele. Apesar da sua vida passada, não se julga indigna de ser a discípula número um do profeta de Nazaré; não se esquiva da presença do Mestre com alegações de pretensa "humildade"; presta-lhe o mais apaixonado serviço que uma alma feminina pode prestar a um homem que ela, ao mesmo tempo, ama e respeita. Deixara o fariseu de oferecer água e toalha para lavar e enxugar os pés do hóspede, Madalena supre essa falta; não manda buscar uma bacia d'água, mas substitui a água, impessoal e fria, com o calor tão pessoal e quente das lágrimas dos seus olhos. Nem manda vir uma toalha inerte para enxugar os pés do querido Mestre, mas lança mão da suave maciez da sua linda cabeleira para prestar a Jesus uma prova de afeição eminentemente pessoal, não menos de discípula que de mulher. Depois, abre um frasco de essência perfumosa e de tão elevado preço que Judas, perito no assunto, se revoltou contra semelhante "desperdício"; o amor, porém, não sabe nada de "desperdício", porque quem se "perdeu" em outra pessoa está disposto a "perder" tudo por amor ao ente amado, na certeza de que toda a perda é lucro. E a Madalena deita o conteúdo do frasco sobre os pés e a cabeça do Mestre querido e completa essa homenagem espalhando o precioso ungüento com os beijos dos seus lábios.
O "escândalo" era completo, de maneira que até os discípulos de Jesus se revoltaram. O Nazareno, po­rém, aceita em silêncio essa homenagem da parte duma mulher que, na opinião pública, continuava a passar por uma pecadora.
Como é tão diferente a filosofia cósmica do Naza­reno das teologias espiritualistas dos mestres humanos!
Jesus
Não adora a mulher.
Não despreza a mulher.
Não é indiferente à mulher.
Não receia a mulher.
Não foge da mulher.
Aceita o amor puro de uma chamada · 'impura" .
Não se escandaliza, como o fariseu.
Não se revolta, como Judas e os demais discípulos.
Defende o "desperdício" que uma ardente discípula faz com seu querido Mestre.
Permite que a Madalena desabafe, finalmente, em público, a plenitude do seu coração de fogo na ardente homenagem ao único homem plenamente humano e totalmente divino que encontrou nos caminhos tortuo­sos da sua vida, finalmente retificada. De fato, o que os machos humanos haviam dado a essa mulher era apenas aquilo que toda fêmea humana deseja - mas nenhum deles lhe dera aquilo por que todo o seu ser humano anseia: compreensão, reverência, delicadeza, simpatia, estima, amor.
A Madalena, nada virgem de corpo, era perfeitamente virgem de alma; acasalada com muitos, não casara com ninguém; as núpcias do seu verdadeiro Eu, humano e feminino, nunca haviam sido celebradas. E foi por isto que ela, a ardente virgem de Mágdala., pôde celebrar, finalmente, as suas verdadeiras e eternas núpcias com o divino Lógos, o Verbo que se fizera homem em Jesus, cheio de graça e de verdade.
Simão, o fariseu, nada compreendeu desse mistério que se passava em sua casa; só sabia, ou julgava saber, que essa mulher era uma pecadora; mas não sabia que ela era a virgem pura do livro dos Cantares; que ela, mesmo sem o conhecer, passara a vida toda suspirando pelo Esposo, em longas noites de agonia anônima, e dele era noiva ignota - até, finalmente, se lhe prostrar aos pés e reconhecê-la pelo grande -e único Amor de sua vida.
Apesar desse impetuoso amor da Madalena, ela, guiada por uma intuição infalível, sempre se mantém a reverente distância de Jesus; sempre se sente "discí­pula" do grande "Mestre"; sente-se bem aos pés dele, não reclama lugar ao lado dele. Sente-se qual humilde violeta a florir, feliz, à sombra do Himalaia; não pre­tende ser um edelweiss no cume da montanha. Em casa do fariseu, jaz aos pés do Mestre; no horta do Getsê­mani. na alvorada da Páscoa, abraça-se com os pés do Mestre - ela, a feliz discípula, ela, a ditosa violeta à sombra do gigantesco Himalaia do seu místico Esposo. . .
Não parece que a Madalena fugiu das páginas do Cântico dos Cânticos? Poderia repetir tudo o que, nesse poema erótico-místico, disse a Esposa ao Esposo tão longínquo - e tão propínquo. . .
       Entretanto, para se sentir o que ela sentiu, deve-se ser o que ela era.
       Muitas são o que Madalena foi - poucas se tornam o que ela se tornou.
       "Os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou."
       De muitas são os muitos pecados - de poucas é o grande amor.
Todas as águas turvas da vida libidinosa da peca­dora abismaram-se, finalmente, na imensa limpidez do divino oceano de Lógos que se fez homem em Jesus e habita entre nós. . .
- E houve hosanas e aleluias na alma da Madalena.

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