sábado, 10 de maio de 2014

discurso sobre a vida futura

Allan Kardec
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REVISTA ESPÍRITA
Jornal de Estudos Psicológicos
publicada sobre a direção de Allan Kardec

junho de 1861


Pregado por Channing, no domingo de Páscoa de 1834, depois da morte de um dos seus amigos.


Várias vezes reproduzimos, nesta Revista, os ditados espontâneos do Espírito de Channing, que não desmente, de nenhum modo, a superioridade de seu caráter e de sua inteligência. Nossos leitores ficarão contentes em lhes dar uma idéia das opiniões que professava, quando vivo, pelo fragmento adiante de um dos seus discursos, do qual devemos a tradução à cortesia de um dos nossos assinantes. O seu nome sendo pouco conhecido na França, precedê-lo-emos de uma curta notícia biográfica.

William Ellery Channing nasceu em 1780, em Newport, Rhode-Island, Estado de Nova York. Seu avô, William Ellery, assinou a famosa declaração da independência. Channing foi aluno do colégio de Harward, destinado à profissão médica; mas os seus gostos e as suas aptidões levaram-no à carreira religiosa, e, em 1803, tornou-se ministro da capela unitária de Boston. Depois, morou sempre nessa cidade, professando a doutrina dos Unitários seita protestante que conta numerosos adeptos na Inglaterra e na América, no mundo mais elevado. Fez-se notar pelas suas visões amplas e liberais; pela sua eloqüência notável, suas obras que são numerosas e a profundidade de seus objetivos filosóficos, conta no número dos homens mais marcantes dos Estados Unidos. Partidário declarado da paz e do progresso, pregou sem descanso contra a escravidão, e travou com essa instituição uma guerra tão obstinada que, a muitos dos liberais, esse excesso de zelo que prejudicava a sua popularidade, parecia, às vezes, inoportuno. Seu nome foi autoridade entre os anti-escravagistas. Morreu em Boston, em 1822, com a idade de 62 anos. Gannet sucedeu-o como chefe da seita dos Unitários.

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"Para a massa dos homens, o céu é, quase sempre, um mundo de fantasia; falta-lhe substância; a idéia de um mundo no qual existem seres sem corpos grosseiros, Espíritos puros ou revestidos de corpos espirituais ou etéreos, parece-lhes uma pura ficção; o que não se pode ver, nem tocar, não lhes parece de nenhum modo real. Isso é triste, mas não espantoso, porque como se poderia que, homens mergulhados na matéria e seus interesses, não cultivando de nenhum modo o conhecimento de sua alma e de suas capacidades espirituais, possam compreender uma vida espiritual mais elevada? A multidão considera como sonhador visionário aquele que fala claramente e com alegria de sua vida futura e do triunfo do Espírito sobre a decomposição corpórea. Esse ceticismo sobre as coisas espirituais e celestes é tão irracional e pouco filosófico quanto aviltante.

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E quanto é pouco racional imaginar que não há outros mundos senão este, outro modo de existência mais elevada do que a nossa! Quem é aquele que, percorrendo com o olhar esta criação imensa, pode duvidar de que não haja seres superiores a nós ou ver alguma coisa de insensata em conceber o Espírito num estado menos circunscrito, menos entravado do que sobre a Terra, em outras palavras, que há um mundo espiritual?

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"Aqueles que nos deixaram por um outro mundo, devem ter ainda o mais profundo interesse neste; seus laços com aqueles que deixaram estão depurados, mas não dissolvidos. Se o estado futuro é uma melhoria sobre o estado presente, se a inteligência deve estar fortificada e o amor desenvolvido, a memória, força fundamental da inteligência, deve agir sobre o passado com maior energia, e todas as afeições benevolentes que se manteve devem dela receber uma atividade nova. Supor a vida terrestre apagada do Espírito, isso seria destruir-lhe a utilidade, seria romper a relação entre os dois mundos e subverter a responsabilidade, porque como a recompensa ou o castigo alcançariam uma existência esquecida? Não; é necessário que levemos o presente conosco, qualquer que seja o nosso futuro, feliz ou infeliz. Os bons formarão, é verdade, laços novos mais sadios, mais fortes; mas, sob a influência expansiva desse mundo melhor, o coração terá uma capacidade bastante grande para reter os laços antigos, tudo deles formando novos; lembrar-se-á com ternura de seu lugar de nascimento, gozando em tudo de uma existência mais madura e mais feliz. Se eu pudesse supor que aqueles que partiram morrem para aqueles que ficam, eu os honraria e os amaria menos. O homem que, deixando o esquecimento dos seus, parece desprovido dos melhores sentimentos de nossa natureza; e se, em sua nova pátria, os justos deveriam esquecer seus pais sobre a Terra, se devessem, em se aproximando de Deus, cessar de interceder por eles, poderíamos achar que a mudança lhes proveitosa?

"Poder-se-ia perguntar se aqueles que são levados para o céu, não só se lembram com interesse daqueles que deixaram sobre a Terra, mas, ainda, se disso têm um conhecimento presente e imediato. Eu não sei nenhuma razão para crer que esse conhecimento não exista. Estamos habituados a olhar o céu como longe de nós, mas nada no-lo prova. O céu é a união, a sociedade dos seres espirituais superiores; esses seres não podem encher o universo, tornando assim o céu por toda a parte? É provável que tais seres estejam circunscritos como nós por limitações materiais? Disse Milton:

"Millions of spiritual beings walk the earth
Both when we wake and when we sleepp.

"Milhões de seres espirituais percorrem a Terra,
Tão bem quando velamos, quanto quando dormimos."

Um sentido novo, um novo olho poderia nos mostrar que o mundo espiritual nos cerca de todos os lados. Mas, suponde mesmo que o céu esteja longe, seus habitantes não podem menos estar presentes nele, e nós visíveis para eles; porque, que entendemos pela presença? Não sou presente para aqueles, dentre vós, que meu braço não pode alcançar, mas que vejo distintamente? Não está plenamente de acordo com o nosso conhecimento da Natureza supor que aqueles que estão no céu, qualquer que seja o lugar de sua residência, possam possuir sentidos e órgãos espirituais por meio dos quais possam ver, o que está distante, tão facilmente quanto distinguimos o que está próximo? Nosso olho percebe, sem dificuldade, os planetas a milhões de léguas de distância, e com a ajuda da ciência podemos mesmo reconhecer as desigualdades de sua superfície. Podemos mesmo supor um órgão visual bastante sensível, ou um instrumento bastante possante, para permitir distinguir, de nosso globo, os habitantes dos mundos distantes; por que, pois, aqueles que entraram na sua fase de existência mais elevada, que estão revestidos de corpos espiritualizados, não poderiam contemplar nossa Terra, tão facilmente quanto quando era a sua morada?

"Isso pode ser verdade; mas se o aceitamos assim, disso não abusamos: poder-se-ia disso abusar. Não pensamos nos mortos como se eles nos contemplassem com um amor parcial terrestre; eles nos amam mais do que nunca, mas com uma afeição espiritual depurada. Não têm, quanto a nós, senão um único desejo, o de que nos tornemos dignos de nos juntarmos a eles em sua morada de beneficência e de piedade. Sua visão espiritual penetra as nossas almas; se pudéssemos ouvir a sua voz, isso não seria, de nenhum modo, uma declaração de afeição pessoal, mas um apelo vivo a esforços maiores, a uma abnegação mais firme, a uma caridade mais ampla, a uma paciência mais humilde, a uma obediência mais filial à vontade de Deus. Eles respiram a atmosfera da beneficência divina, sua missão é agora mais elevada do que não o era aqui.

"Dir-me-eis que, se os nossos mortos conhecem os males que nos afligem, o sofrimento deve existir nessa vida bendita? Eu respondo que não posso considerar o céu senão como um mundo de simpatias. Nada pode, parece-me, melhor atrair os olhares de seus habitantes benfazejos, como a visão da miséria de seus irmãos; mas essa simpatia, se ela faz nascer a tristeza, está longe de tomar infelizes aqueles que a sentem. No mundo aqui embaixo, a compaixão desinteressada, unida ao poder de abrandar o sofrimento, é uma garantia de paz proporcionando as mais puras alegrias. Livres de nossas enfermidades presentes, e esclarecidos pelas visões mais extensas sobre a perfeição do governo divino, essa simpatia acrescentará mais encanto às virtudes dos seres benditos, e, como toda outra fonte de perfeição, não fará senão aumentar a sua felicidade.

* * *

"Nossos amigos que nos deixam por esse outro mundo, não se encontram , de nenhum modo, no meio de desconhecidos; eles não têm esse sentimento desolado de ter mudado a sua pátria para uma terra estranha. As mais ternas palavras da amizade humana não se aproximam dos acentos de felicitação que os esperam à sua chegada nessa morada. Lá o Espírito tem meios mais seguros de se revelar do que aqui; o recém-chegado se sente e se vê cercado de virtudes e de bondade, e por essa visão íntima dos Espíritos simpáticos que o cercam, laços mais fortes do que aqueles que são cimentados pelos anos sobre a Terra, podem se criar em um momento. As afeições mais íntimas sobre a Terra são frias comparadas às dos Espíritos. De que maneira eles se comunicam? Em que língua e por meio de quais órgãos? Nós o ignoramos, mas sabemos que o Espírito, progredindo, deve adquirir maior facilidade para transmitir o seu pensamento.

Seria erro crer que os habitantes do céu se apoiam na comunicação recíproca de suas idéias; aqueles que atingem esse mundo entram, ao contrário, em um estado novo de atividade, de vida e de esforços. Somos levados a olhar o estado futuro como de tal modo feliz para que ali ninguém tenha necessidade de ajuda, que o esforço cessa, que os bons não têm outra coisa a fazer do que gozar. A verdade, no entanto, é que toda ação sobre a Terra, mesmo a mais intensa, não é senão um jogo infantil, comparada à atividade, à energia desdobradas nessa vida mais elevada. Ali deve ser assim, porque não há princípio mais ativo do que a inteligência, a beneficência, o amor do verdadeiro, a sede de perfeição, a simpatia pelos sofrimentos e o devotamento à obra divina, que são os princípios expansivos da vida de além-túmulo. É então que a alma tem consciência de suas capacidades, que a verdade infinita se desdobra diante de nós, que se sente que o Universo é uma esfera sem limite para a descoberta, para a ciência, para a beneficência e a adoração. Esses novos objetos da vida, que reduzem a nada os interesses atuais, se desdobram constantemente. Não é preciso, pois, de nenhum modo, supor que o céu é composto de uma comunidade estacionaria. Eu o suponho como um mundo de planos e de esforços prodigiosos para o seu próprio adiantamento. Eu o considero como uma sociedade atravessando fases sucessivas de desenvolvimento, de virtudes, de conhecimentos, de poder, pela energia de seus próprios membros.

O gênio celeste é sempre ativo em explorar as grandes leis da criação e os princípios eternos do espírito, a revelar o belo na ordem do Universo e a descobrir os meios de adiantamento para cada alma; lá, como aqui, há inteligências de diversos graus, e os Espíritos, os mais elevados, encontram a felicidade e o progresso em elevar os mais atrasados; lá, o trabalho de educação, começado neste mundo, prossegue sempre, e uma filosofia mais divina do que a ensinada entre nós, revela ao Espírito a sua essência própria, excita-o a esforços alegres para a sua própria perfeição.

"O céu está em relação com outros mundos; seus habitantes são os mensageiros de Deus em toda a criação; eles têm grandes missões a cumprir, e para o progresso de sua existência sem fim, pode a eles ser confiado o cuidado de outros mundos."

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Este discurso foi pronunciado em 1834; nessa época não havia ainda, de nenhum modo, questão na América das manifestações dos Espíritos; Channing, pois, delas não tinha conhecimento, dê outro modo teria afirmado o que, em outros pontos, colocou como hipótese; mas não é notável ver esse homem pressentir, com tanta justeza, o que deveria ser revelado alguns anos mais tarde; porque com poucas exceções, a sua descrição da vida futura com ela concorda perfeitamente; não lhe falta senão a reencarnação, e ainda, examinando-o de perto, vê-se que ele a costeia, como costeia as manifestações sobre as quais se cala, porque não as conhecia. Com efeito, admite o mundo invisível ao redor de nós, no meio de nós, cheio de solicitude por nós, nos ajudando a progredir; daí às comunicações diretas não há senão um passo; admite, no mundo celeste, não a contemplação perpétua, mas a atividade e o progresso; admite a pluralidade dos mundos corpóreos, mas mais ou menos avançados; se tivesse dito que os Espíritos podem cumprir seu progresso passando por esses diferentes mundos, era a reencarnação. A idéia desses mundos progressivos é mesmo inconciliável, sem isso, com a da criação das almas no momento do nascimento do corpo, a menos de se admitir almas criadas mais ou menos perfeitas, e então seria preciso justificar essa preferência. Não é mais lógico dizer que se as almas de um mundo são mais avançadas que num outro, é que elas já viveram em mundos inferiores? Isso pode-se dizer tanto dos habitantes da Terra comparados entre eles, desde o selvagem até o homem civilizado. Qualquer que ela seja, perguntamos se uma tal pintura da vida de além-túmulo, por suas deduções lógicas, acessível às inteligências mais vulgares, aceitáveis pela razão mais severa, não é cem vezes mais própria para produzir a convicção e a confiança no futuro do que o horrendo e inadmissível quadro das torturas sem fim emprestadas ao Tártaro do paganismo? Aqueles que pregam essas crenças não desconfiam do número de incrédulos que fazem e recrutas que proporcionam à falange dos materialistas.

Notemos que Milton, citado nesse discurso, emitiu sobre o mundo invisível ambiente uma opinião conforme com a de Channing, que é também a dos Espíritas modernos. É que Milton, como Channing, como tantos outros homens eminentes, eram Espíritas por intuição; por isso não cessamos de dizer que o Espiritismo não é uma invenção moderna; é de todos os tempos, porque houve almas em todos os tempos, e que em todos os tempos a massa dos homens acreditou na alma; também encontram-se traços dessas idéias numa multidão de escritores antigos e modernos, sagrado e profanos. Essa intuição das idéias espíritas é de tal modo geral que vemos, todos os dias, uma multidão de pessoas que, ouvindo falar pela primeira vez dele não se espantam: não falta senão uma fórmula para a sua crença.

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